Benedita da Silva: a evangélica que já era progressista muito antes do termo existir

Benedita da Silva. Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados.

Por Marllon Alves

Apesar de professar a fé evangélica, Benedita da Silva teve uma atuação política pouco comum para uma cristã até então pertencente a Assembleia de Deus. Não havia (ou não era muito conhecida) uma classificação especifica para a atuação de Benedita na esfera política, embora fosse evidente que a mesma era incomum. Nos últimos tempos tem ganhado força a definição de “cristão progressista” e, ao analisar a trajetória política da mulher analisada neste texto, a mesma pode ser encaixada nesta mesma vertente em questão.

            Filha de um operário do ramo da construção e de uma lavadeira, ambos analfabetos, Benedita da Silva é a décima-segunda em uma família de treze filhos. Trabalhou como empregada doméstica e camelô. Tornou-se  auxiliar de enfermagem e quando já era vereadora, graduou-se em Serviço Social. A politização de Benedita se deve aos pais. Filha de uma mãe de santo, herdou de sua genitora a capacidade de liderança e nas associações comunitárias desenvolveu sua formação política. Aos 24 anos de idade torna-se membro da Assembleia de Deus, mas não aderindo ao “apoliticismo”. E aqui merece uma observação. A Assembleia de Deus no Brasil se consolidou entre as camadas mais pobres da sociedade. Neste contexto, o ingresso de assembleianos na política institucional não era algo muito comum até então.

            Benedita da Silva é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde o seu ingresso na política institucional, no início dos anos 1980, quando foi eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, sendo a única eleita pelo partido na cidade. Quando se filiou ao partido em questão, o Brasil vivia os últimos anos de uma ditadura civil-militar imposta em 1964. Surgido em meados dos anos 1970 e graças ao trabalho de base, o PT tornou-se o partido que incorporou dentro de si todas as insatisfações e anseios da sociedade de então (não tardaria para este mesmo partido se tornar o maior e mais importante partido de esquerda da América Latina). A nível nacional, o surgimento e expansão do PT ocorreu em um contexto em que a ditadura civil-militar no Brasil já agonizava, conforme citado neste mesmo parágrafo. Já a nível internacional, o mundo vivia os anos finais da Guerra Fria, onde EUA e URSS disputavam a hegemonia global. Motivados pelo sentimento anticomunista, o PT foi associado a URSS e consequentemente transformado na encarnação do mal, recebendo todo tipo de xingamento que o comunismo e a esquerda em geral costumam receber no Brasil. Organizada tradicionalmente em uma hierarquia, tal como as Forças Armadas e bastante conservadora, não é de se estranhar que muitos membros da Assembleia de Deus simpatizassem com a ditadura. Desta forma, Benedita da Silva mostrou mais uma vez ser um ponto fora da curva.

            As pautas defendidas por Benedita da Silva estavam relacionadas ao direito dos pobres, dos negros, das mulheres e homossexuais. Por conta disso, a mesma era vista com desconfiança por boa parte das lideranças cristãs porque estas mesmas pautas eram antagônicas as diretrizes de sua denominação evangélica. Eleita vereadora em 1982, quatro anos depois Benedita da Silva chegou à Assembleia Nacional Constituinte (a Carta Magna que vigora no país ficou pronta em 1988) e mais uma vez Benedita da Silva mostrou sua peculiaridade. Negra, de origem humilde e neta de escravos, Benedita tinha por colegas no Congresso Constituinte pastores, cantores sacros e empresários bem sucedidos. Muitos destes não tinham experiência política e eram defensores de pautas conservadoras. Em uma “cena simbólica”, conforme registrou a revista Veja na edição de 1º de julho de 1987, Benedita viveu um dia histórico. Acerca do ocorrido, a mesma revista disse o seguinte: “No plenário da Constituinte de 1823, discutiam-se a liberdade de imprensa, os poderes do imperador Pedro I e como seria o país que acabava de declarar sua independência – mas nenhum parlamentar ocupou-se da questão do trabalho em um país que, naquela época, utilizava mão-de-obra escrava. Na última quarta-feira, quando a deputada Benedita da Silva, do PT fluminense, assumiu a presidência da Constituinte pelo prazo de 30 minutos, ocorreu um fato histórico. Pela primeira vez na História do país, uma neta de escravos que trabalhavam em fazendas de Minas Gerais comandou a sessão do plenário encarregado de escrever uma nova Carta de Leis para o país”. No dia seguinte e mais uma vez por meia hora, Benedita presidiu o trabalho da Constituinte mais uma vez. Diante do simbolismo e privilégio por ocupar, ainda que temporariamente, a presidência da Mesa, a política disse que sentiu “calafrios”. “Eu nunca me preparei psicologicamente para isso”, diria Benedita. Crítica das estruturas sociais do país, a política em questão afirmou: “Favelado só aparece nos jornais em condições desfavoráveis. Espero apenas que, um dia, isso não seja mais novidade”.

Benedita da Silva durante pronunciamento na Constituinte, em 1986. Imagem: Reprodução.

            Conforme dito neste texto, Benedita da Silva foi uma assembleiana fora da curva e justamente por conta deste fato pagou seu preço. Embora fosse membro da Assembleia de Deus (atualmente, Benedita frequenta a Igreja Presbiteriana), a política em questão nunca foi um “produto político” da Assembleia de Deus. Nunca foi uma candidata oficial desta mesma denominação e a sua trajetória política fere a mentalidade tradicional da igreja, que não incentiva membros comuns (principalmente mulheres pobres e negras) a conquistarem posições de destaque na sociedade secular. Em 1992, quando tentou ser eleita prefeita da cidade do Rio de Janeiro, não recebeu o apoio das principais Assembleias de Deus na época. Recebeu o apoio de alguns segmentos, mas foram exceções. Em setembro de 1986, o Mensageiro da Paz, principal jornal das Assembleias de Deus no Brasil, em uma reportagem sobre alguns candidatos assembleianos a Constituinte, falou de Benedita da Silva. A descrição da mesma revela mais uma vez que a política era um ponto fora da curva. “A vereadora Benedita da Silva, líder do seu partido na Câmara do Rio de Janeiro e membro da AD Leblon, tem procurado levar sempre à comunidade evangélica a necessidade de um envolvimento maior do crente com a verdadeira justiça social”, escreveu o Mensageiro da Paz. Curiosamente, este mesmo jornal ignorou completamente a histórica ocasião em que Benedita da Silva presidiu a Assembleia Constituinte.

            “Minha prática política é baseada na minha prática espiritual. Por isso quero que todos tenham direitos”, disse Benedita da Silva ao Mensageiro da Paz, jornal que havia ignorado a mesma no passado. Neste mesmo jornal, a política disse que, como mulher negra e cristã, enfrenta discriminações e preconceitos, mas isso não a impedia de continuar lutando por justiça social. “Não compreendo como existem cristãos muito ricos e não dividem a riqueza com os empregados, deixando até de pagar férias, 13º salário…E à noite estão nas igrejas, dirigindo cultos”. Neste mesmo jornal, em edição de setembro de 1986, Benedita da Silva disse que “essa discussão tem muita importância para mim, mesmo que tenha algum político evangélico e latifundiário querendo defender suas terras. Minha participação será sobretudo, a de uma serva do Senhor na Constituinte”.

            Apesar de rejeitada pelas principais lideranças evangélicas, Benedita da Silva tornou-se muito popular nas periferias do Rio de Janeiro. Embora tenha perdido a disputa pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro em 1992, no ano de 1994 a mesma foi eleita senadora por este mesmo estado. Mais de 2.200.000 fluminenses elegeram Benedita da Silva para o Senado Federal. Era a primeira vez no Brasil que uma mulher negra chegava à câmara alta do Poder Legislativo brasileiro. Foi eleita vice-governadora do estado do Rio de Janeiro na chapa de Anthony Garotinho em 1998, renunciando antes ao seu mandato de senadora, que terminaria em 2002. Neste mesmo ano de 2002 houve no Brasil eleições para a Presidência da República e para governadores dos estados do país. A fim de disputar o pleito presidencial, Anthony Garotinho renuncia ao governo do estado e quem o substitui na função é Benedita da Silva, que governou o estado do Rio de Janeiro por nove meses. Tentou ser eleita governadora, mas Benedita perdeu o pleito estadual para Rosinha Garotinho, esposa de Anthony Garotinho.

Benedita da Silva em pose para foto. A formação política da mesma se deu nas periferias, reivindicando melhorias para a população vulnerável. Créditos na imagem.

            Conforme já analisado neste texto, apesar de ser rejeitada pelas principais lideranças assembleianas, Benedita da Silva conseguiu ser uma pessoa popular entre os moradores da periferia e os cristãos que partilham da fé evangélica. Sua visibilidade e credibilidade entre o segundo segmento ajudaram a novelista Glória Perez a desvendar o que de fato havia acontecido com sua filha Daniella Perez, barbaramente assassinada no fim de dezembro de 1992. Não demorou muito para descobrirem que Guilherme de Pádua havia matado sua então colega de elenco Daniella Perez (ambos atuavam na novela De Corpo e Alma). Entretanto, muitas explicações precisavam ser dadas. Uma delas era se Guilherme de Pádua havia cometido o crime sozinho ou não, por exemplo (depois foi descoberto que Paula Thomaz, até então esposa de Guilherme e que agora assina Paula Nogueira Peixoto, teve participação no crime em questão). Diante disso, Guilherme de Pádua dizia que o crime havia sido passional. Entretanto, na noite do mesmo dia em que Glória Perez enterrou sua filha, a novelista passou a receber ligações anônimas dizendo para ela ir ao posto perto de onde ficava o estúdio da TV Globo porque ali a mesma poderia saber o que de fato havia acontecido com a filha. Entretanto, por medo de represálias, os funcionários do posto de gasolina em questão se recusavam a falar o que haviam testemunhado e tentaram eliminar as possíveis provas do crime que chocou o país. Perseverante, Glória Perez foi em favelas da cidade do Rio de Janeiro e enfrentou dias chuvosos para encontrar as testemunhas do crime e convencê-las a depor. O esforço não foi em vão: o frentista Flávio Bastos contou o que viu. O mesmo testemunhou quando, em seu carro, Guilherme de Pádua emboscou o carro dirigido por Daniella Perez. Após isso, o ator deu um violento soco em Daniella que, além de desmaiar a mesma, deformou o maxilar da atriz e fez com que a jovem urinasse em sua própria roupa. O depoimento de Flávio Bastos derrubou a tese de crime passional defendida por Guilherme de Pádua.

            Entretanto, havia outra testemunha do crime e é neste momento em que Benedita da Silva entra em ação. Antônio Clarete foi o lavador de carros que limpou o carro de Guilherme de Pádua após ele ter cometido o crime em questão. O mesmo não sabia o que o então cliente havia feito e ficou intrigado quando viu que saia algo vermelho do carro de Guilherme junto com a água. O ator estava nervoso, ao passo que uma mulher permaneceu o tempo todo de costas. Antônio não sabia de quem se tratava, mas definiu o pouco que conseguiu ver da mesma. Como sua definição era similar a dada por Hugo da Silveira, que anotou as placas dos carros dos assassinos pelo fato de os mesmos estarem em um local ermo, logo ficou esclarecido que se tratava de Paula Nogueira Peixoto. Entretanto, assim como Flávio Bastos, Antônio Clarete estava com medo de depor as autoridades por medo de represálias. Na tentativa de fazer o lavador dar seu depoimento, Glória Perez descobre que o mesmo era evangélico. Com isso, a novelista aciona sua rede de contatos e pede a Benedita da Silva e o bispo Manoel Ferreira, líder vitalício da Assembleia de Deus Ministério Madureira, para conversarem com Antônio Clarete, mostrando o quão importante era dizer o que viu para as autoridades. O pedido foi acatado e os depoimentos de Flávio Bastos e Antônio Clarete foram essenciais para a elucidação do crime. Em 2012, quando o crime em questão completou 20 anos, Glória Perez escreveu um texto em suas redes sociais agradecendo as pessoas que ajudaram a esclarecer o assassinato de Daniella Perez. Glória não se esqueceu de Benedita.

            Nos últimos tempos o conceito de cristão progressista tem ganhado força. Não chega a ser uma corrente teológica ou até mesmo há uma igreja que carregue tal expressão. Cristãos classificados como progressistas podem ser encontrados na Assembleia de Deus, Igreja Batista, Igreja Presbiteriana, Congregação Cristã no Brasil, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Metodista… Entre as pautas defendidas por estes cristãos estão a justa distribuição de renda, a erradicação da fome, igualdade de gênero, combate ao racismo, defesa dos direitos da população LGBTQIAP+, a legalização do aborto e a legalização das drogas. Os cristãos progressistas defendem pautas que a maioria da população cristã costuma se opor. Por conta deste fato, eles tendem a serem mal vistos dentro da denominação que fazem parte. Ao integrar um partido de esquerda, defender um salário mínimo justo, a igualdade de gênero e combater o racismo, Benedita da Silva passou a ser mal vista por aqueles que compartilham da mesma fé que a política. Entretanto, isso não foi um impedimento para que Benedita continuasse a defender as suas pautas. O prestigio obtido entre a população periférica e o fato de ter contribuído em prol da população negra em mais de uma ocasião mostram que o trabalho da política não foi em vão.

Conclusão

A atuação política de Benedita da Silva revelou-se pouco comum em vários aspectos. Por conta deste fato, foi vista com desconfiança pelas principais lideranças evangélicas. Esta desconfiança evoluiu para uma espécie de boicote quando Benedita se candidatou a diversos cargos da política institucional. Entretanto, esse “boicote” não impediu que o nome da política em questão se consolidasse entre as classes periféricas e até mesmo entre a população evangélica. Ao analisar a trajetória política de Benedita, a mesma pode ser classificada como uma cristã progressista, termo pouco comum nas décadas de 1980 e 1990, por exemplo. Este fato revela que o termo cristão progressista pode ser recente, mas a prática que o classifica talvez não seja tão recente assim.

Referências:

https://mariosergiohistoria.blogspot.com/2010/12/benedita-da-silva-uma-candidata-fora.html visualizado no dia 01/12/2022;

https://mariosergiohistoria.blogspot.com/2016/01/o-dia-de-benedita-na-constituinte.html?m=0 visualizado no dia 01/12/2022;

https://www.socialistamorena.com.br/evangelicos-progressistas-gracas-a-deus/ visualizado no dia 01/12/2022;

https://noticias.gospelmais.com.br/gloria-perez-agradece-evangelicos-ajuda-prisao-guilherme-padua-47359.html visualizado no dia 01/12/2022;

https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/07/28/como-frentistas-ajudaram-a-desvendar-o-assassinato-de-daniela-perez.htm visualizado no dia 01/12/2022;

https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/celebridades/como-gloria-perez-investigou-assassinato-da-filha-com-metodos-desesperados-85851 visualizado no dia 01/12/2022.

Como citar este texto:

– ALVES, Marllon. Benedita da Silva: a evangélica que já era progressista muito antes do termo existir. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2022/12/02/benedita-da-silva-a-evangelica-que-ja-era-progressista-muito-antes-do-termo-existir/ publicado no dia 02/12/2022.

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