• A mulher que emprestou sua voz a uma das músicas brasileiras mais conhecidas do mundo

    Loalwa Braz em clipe de Chorando se foi. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                Apesar de ter sido uma cantora talentosa, Loalwa Braz é um nome que passa despercebido por muita gente. Entretanto, basta tocar Chorando se foi para todo mundo saber de quem se trata.

                Loalwa Braz nasceu em Jacarepaguá, bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Oriunda de uma família de classe média, o pai era maestro de uma orquestra popular e a mãe uma pianista clássica. Vivendo em um ambiente musical, Loalwa decide seguir carreira no mundo da música. Após uma apresentação em Paris no ano de 1985, Loalwa decide viver em solo europeu. Foi nesta época que a cantora conhece os produtores musicais franceses Olivier Lorsac e Jean Karacos, que estavam à procura de uma cantora entre 19 e 25 para ser a vocalista de um grupo de lambada que eles estavam formando. Apesar de já ter mais de 30 anos, Loalwa resolveu participar do teste e foi aprovada, desbancando duas dezenas de candidatas ao mesmo posto. Além disso, a cantora em questão deu nome ao grupo: Kaoma, visto como o responsável por lançar a lambada com êxito na Europa. Era o início de uma história de sucesso.

    Loalwa Braz (a segunda, da esquerda para a direita) junto dos demais integrantes do grupo Kaoma. Imagem: Reprodução.

                No verão de 1989 no hemisfério norte, que ocorre entre os meses de junho e setembro, o grupo Kaoma lança o disco World Beat tendo como single a canção Lambada, popularmente conhecida como Chorando se foi. O hit tornou-se um sucesso global. Graças a esta música, o disco World Beat vendeu milhões de cópias em todo mundo. Chorando se foi ocupou as primeiras posições em países como Brasil, Áustria, Bélgica, Holanda, Nova Zelândia, Suíça, Suécia, Finlândia, França, Alemanha, Itália e Espanha, por exemplo. Em suas entrevistas, Loalwa gostava de contar que estava na Alemanha na ocasião da queda do Muro de Berlim, em 1989, e as pessoas cantavam e dançavam Chorando se foi nas ruas.

    Disco do Kaoma, lançado no ano de 1989. Observem que o disco destaca o sucesso feito na Europa e destaca alguns países onde ele ficou em primeiro lugar. Imagem: Reprodução.

                Conforme já citado neste texto, o mega hit em questão foi um sucesso mundial e desde seu lançamento, em 1989, a canção foi gravada por vários artistas. Fafá de Belém, Nando Reis, Calcinha Preta e Aviões do Forró são alguns exemplos. Vale destacar a regravação de Ivete Sangalo, que entrou no repertório de um DVD ao vivo gravado no estádio do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro, e lançado no ano de 2007. Com um arranjo solar e marcado pelo axé, estilo musical de origem de Ivete Sangalo, a versão da cantora baiana ajuda a explicar, ao menos em partes, os motivos de com o tempo Chorando se foi ser uma canção associada ao carnaval. Destaque também para On the floor, single de Jennifer Lopez lançado em 2011 em parceria com o rapper Pitbull. A música possui trechos do sample do sucesso em questão.

                Não é exagero dizer que Chorando se foi é uma canção que atravessa gerações em diversas partes do mundo. Na edição russa do programa musical The Voice, uma candidata durante o processo de audição às cegas cantou a música em questão e antes da apresentação terminar teve uma cadeira virada para si. Em um episódio de Masha e o Urso, série de desenhos animados de origem russa, há um episódio de temática carnavalesca onde a música em questão é tocada.

                Por outro lado, nem tudo foram flores na vida Loalwa Braz, embora ela e os integrantes do grupo Kaoma não tivessem culpa de nada. Chorando se foi é uma versão não autorizada de Llorando se Fue, composta pelos irmãos bolivianos Ulisses e Gonzalo Hermosa e gravada pelo grupo Los Kjarkas no álbum A La Mujer De Mi Pueblo (1981). A versão em português foi escrita por José Ari e gravada pela cantora Márcia Ferreira em ritmo de lambada no ano de 1986. Dois anos depois, o produtor francês Olivier Lorsac estava de férias na Bahia quando ouviu a música em questão em uma rádio local. Foi então que teve a ideia de criar um grupo de lambada. De volta à França, Olivier Losarc usa o pseudônimo de Chico de Oliveira, rebatizou Chorando se foi de Lambada e registrou a música em um cartório de Paris como se fosse de sua autoria. O próximo passo foi selecionar os integrantes que fariam parte do grupo musical Kaoma. Em 1991, Márcia Ferreira e a editora EMI Songs, que representava os autores da música, entraram na Justiça com uma ação contra os produtores do Kaoma e ganharam a ação.

                Loalwa Braz permaneceu no grupo Kaoma até 1999, quando passou a investir em sua carreira solo. Após muitos anos vivendo na Europa, Loalwa decide retornar ao Brasil. Mantinha uma residência em Saquarema, cidade do estado do Rio de Janeiro situada na região dos lados e conhecida por sediar campeonatos internacionais de surf. No dia 19 de janeiro de 2017, o corpo de Loalwa Braz foi encontrado carbonizado dentro de um carro igualmente destruído pelo fogo. Wallace de Paula Vieira, Gabriel Ferreira dos Santos e Lucas Silva de Lima estavam envolvidos no assassinato de Loalwa e foram condenados a 37, 28 e 22 anos de prisão respectivamente. Os três homens invadiram a pousada, agrediram Loalwa fisicamente e a levaram para Bacaxá, um distrito de Saquarema. Wallace trabalhava como caseiro na pousada onde a cantora residia e, além do assassinato, foi condenado “por causar incêndio em casa habitada”. Antes de morrer, a cantora lutou pela vida, fato que a fez ser colocada ainda viva dentro de um carro. Os homens aqui citados roubaram joias, dinheiro, celular, cartão bancário, a imagem de uma santa, aparelhos de surdez e maquiagem. Na fuga, o carro teria dado problemas com relação ao motor e os três criminosos optaram por incendiá-lo com Loalwa dentro, que estava viva.

    Conclusão

                Chorando se foi é uma das canções brasileiras mais conhecidas de todos os tempos. A versão do grupo Kaoma, cantada por Loalwa Braz,atravessa gerações em várias partes do mundo. É um fato que a música não é de origem brasileira, mas quando se fala em Chorando se foi é da versão brasileira que muita gente lembra. Dentro ou fora do Brasil.

    Referências:

    https://www.bbc.com/portuguese/geral-38688477 visualizado no dia 21/02/2024

    https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/tres-homens-sao-condenados-pela-morte-da-cantora-loalwa-braz-do-grupo-kaoma.ghtml visualizado no dia 21/02/2024.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. A mulher que emprestou sua voz a uma das músicas brasileiras mais conhecidas de todos os tempos. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2024/02/23/a-mulher-que-emprestou-sua-voz-a-uma-das-musicas-brasileiras-mais-conhecidas-do-mundo/ publicado no dia 23/02/2024.

  • Corona e a eurodance no Brasil

    Corona em pose para foto. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                Muitos talvez não saibam, mas a cantora Corona é brasileira. O fato de ter construído praticamente toda a sua carreira no exterior e cantar quase sempre em outro idioma ajudam a entender o motivo de muitas pessoas acharem que a cantora em questão não é nascida no Brasil. Em terras brasileiras, Corona é a personificação da eurodance, ritmo oriundo da Europa e que ajudou a cantora a fazer sua fortuna.

                Nascida Olga Maria de Souza, Corona (que significa coroa em italiano) cresceu em Vigário Geral, favela da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Filha de um músico e de uma cozinheira igualmente apaixonada pela música, antes de seguir neste universo, Corona trabalhou como balconista, vendedora, caixa de supermercado e chegou a prestar concurso público. Com a ideia de sair do Brasil em mente, Corona teria encontrado o ex-jogador Pelé em uma boate e perguntou ao eterno rei do futebol se o melhor lugar para se morar eram os EUA ou a Europa. O astro do futebol mundial teria sugerido a Itália para a cantora.

                No início dos anos 1990, Coroa foi morar nos EUA, depois mudou-se para a Espanha e enfim foi para a Itália. Em território italiano, Corona chegou a cantar em bares, quando em uma destas ocasiões o produtor musical Francesco Bontempi a viu cantando o clássico mundialmente conhecido Garota de Ipanema e enxergou na cantora o potencial que ela tem. Francesco decidiu colocá-la como frontwoman da banda de eurodance Corona, que passou a ser o nome artístico da cantora em questão. Foi com esta banda que a cantora gravou Rhytthm of the Night, a música mais conhecida da carreira de Corona e que atravessa gerações. E aqui vale uma curiosidade: tal música não foi cantada inicialmente por Corona, ela apenas dublava e performava. Esta era uma prática recorrente neste período. Já os sucessos como Baby Baby e Try Me Out são de fato cantados por Corona.

                O ritmo musical eurodance consolidou-se no início dos anos 1990. Tal gênero é caracterizado pela mistura entre hip hop, techno e house music. Tal ritmo começou a crescer e a ganhar visibilidade também. Neste contexto, nomes inspirados na eurodance surgiram em diversas regiões da Europa, como por exemplo Snap! (Alemanha), Vengaboys (Holanda), Aqua (Dinamarca) e, é claro, Corona (Itália). Vale ressaltar que a Itália foi um dos epicentros da ascensão deste ritmo musical. Além da banda aqui citada, outros grupos de eurodance surgidos foram Black Box e Double You. Em 1993, a banda Corona lançou um single que foi um verdadeiro sucesso comercial: Rhythm of the Night.  

    Corona durante apresentação em programa da Xuxa. Imagem: Reprodução.

                Considerada hoje um dos maiores sucessos do eurodance, Rhythm of the Night alcançou a primeisa posição na tabela musical italiana e alcançou o top 10 em diversos países. A música também fez muito sucesso no Brasil. Tamanha popularidade levou Corona a se apresentar em programas de Xuxa Meneghel e Fausto Silva, por exemplo. Ambos eram nomes extremamente fortes da televisão no fim do século XX e seus respectivos programas alcançavam altos índices de audiência. A música em questão marcou época no Brasil e chegou a fazer parte da trilha sonora da novela “das sete” da TV Globo Verão 90 (2019), ambientada nos anos 1990.

                O sucesso de Rhythm of the Night, além da carreira de Corona de uma forma geral, geraram a cantora uma bela fortuna. A cantora seria dona de uma casa no Morumbi, bairro nobre da cidade de São Paulo, um sítio no interior do estado de São Paulo, além de imóveis no Rio de Janeiro, Roma, Portugal e Espanha. Em 2010, o jornal italiano Corriere della Sera estimou a fortuna de Corona em 10 milhões de euros.

    Corona durante sua apresentação no programa Altas Horas, no ano de 2014. Imagem: Zé Paulo Cardeal/TV Globo.

                Rhythm of the Night não se limitou aos anos 1990, pelo contrário. A música em questão atravessou gerações, fazendo com que pessoas de todas as idades saibam quem é Corona. Além disso, de acordo com o WhoSampled, a canção foi “sampleada” 24 vezes, remixada 6 vezes e ganhou 18 releituras. De acordo com Corona, mais de 50 remix da canção Rhythm of the Night são remasterizados por ano. Além disso, a canção está presente na publicidade, em jogos de videogame e já foi até parodiada no Brasil. Quem aí não conhece Jesus humilha Satanás? O grupo alemão Cascada fez um cover desta música, o ritmo pode ser encontrado também na música Ritmo (Bad Boys for Life), uma parceria entre o grupo The Black Eyed Peas e o cantor J. Balvin. Por sua vez, a banda britânica Bastille lançou em 2013 a canção Of the Night, que mistura Rhytm of the Night e Rhytm is a Dancer, outro grande sucesso da eurodance, lançado pelo Snap!

    Conclusão

                Corona foi essencial para a popularização da eurodance no Brasil. A cantora marcou gerações, sendo lembrada até hoje por pessoas de idades diversas. Rhytm of the Night está presente na publicidade, videogames, paródias e até memes. Além disso, a canção já foi remixada diversas vezes e seu ritmo está presente em músicas de diversas nacionalidades. Tudo isso mostra que de fato música boa não tem idade.

    Referências:

    Visualizado no dia 17/01/2024.

    Visualizado no dia 17/01/2024.

    https://gshow.globo.com/programas/video-show/noticia/cantora-brasileira-corona-esta-de-volta-a-italia-e-aos-50-revela-sonho-de-ser-mae-ter-cinco-filhos.ghtml Visualizado no dia 17/01/2024.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. Corona e a eurodance no Brasil. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2024/01/22/corona-e-a-eurodance-no-brasil/ publicado no dia 22/01/2024.

  • O drama pessoal que inspirou uma lei nacional

    Sandra Regina Arantes do Nascimento Felinto em pose para foto. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                Durante os anos 1990, a luta de Sandra Regina pelo reconhecimento paterno foi assunto nos mais diversos jornais e emissoras de televisão. Seu pai era o eterno rei do futebol: Pelé. O mesmo se mostrou relutante em reconhecer a moça como sua filha. Tal ato ocorreu mediante ordem judicial e após diversos exames DNA. A luta de Sandra Regina pelo reconhecimento paterno inspirou uma lei na cidade de Santos (SP), onde foi vereadora, não demorando muito para que a mesma atingisse um caráter nacional.

                No começo dos anos 1960, Pelé já era um futebolista conhecido no mundo esportivo e também bastante popular; e não era para menos. Até este momento, o rei do futebol já tinha no currículo duas Copas do Mundo (1958 e 1962), cujo torneio é simplesmente a maior competição esportiva do mundo. É neste contexto onde Pelé se envolve com a empregada doméstica Anísia Machado, que trabalhava para o rei do futebol. Sandra Regina, fruto desta relação, nasceu 1964. Na época, Pelé era casado com Rosimeri Cholbi, com quem teve três filhos: Kelly, Edinho e Jennifer. Sandra cresceu sem a presença do pai e quando já era uma mulher adulta, decidiu lutar pelo reconhecimento paterno por parte de Pelé. Era o inicio de uma longa batalha.

                No início dos anos 1990, Sandra Regina trabalhava como balconista quando decidiu procurar Pelé. Ela chegou a telefonar para as casas de Pelé e a falar com uma irmã do rei e também com uma então governanta do mesmo. Segundo a própria Sandra, elas foram simpáticas e atenciosas, mas nada podiam fazer. Sandra não teve outra opção, a não ser recorrer aos tribunais. Em 1991, foi feito um exame de DNA e o resultado, que saiu no ano seguinte, comprovou a paternidade de Pelé. Entretanto, o mesmo contestou o resultado e moveu 13 recursos judiciais contra a própria filha. No ano de 1996, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que Sandra Regina era filha de Pelé. Com isso, ela pôde acrescentar o “Arantes do Nascimento” em sua certidão de nascimento. De agora em diante, o nome completo de Sandra Regina passou a ser Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento Felinto.

    Sandra Regina em fotografia feita por Vidal Cavalcante/AE.

                Pelé reconheceu a contragosto a paternidade de Sandra e isso não significa que um sentimento paternal tenha nascido no coração do rei do futebol. Pelé nunca se interessou em se aproximar de Sandra e na época chegou a declarar que, embora a moça possa ser biologicamente sua filha, ele não tinha nenhum sentimento por ela, uma vez que não a conhecia. Sandra morreu em 2006 por complicações em decorrência de um câncer. Mesmo no leito de morte, Pelé não procurou pela filha. Para o sepultamento, o rei do futebol enviou coroa de flores em nome de suas empresas, que foram devolvidas. A rejeição de Pelé por Sandra se estendeu para os dois filhos que esta teve. Conta-se nos dedos os momentos em que o rei do futebol se encontrou com os rapazes em questão. Os jovens tiveram que recorrer a justiça para receber uma pensão por parte do avô.

                Curiosamente, Pelé reconheceu sem contestações e alardes a paternidade de Flávia em 2002. A moça era fruto de um relacionamento do então jogador com uma estudante de jornalismo. Além disso, quando o rei do futebol se casou com Assíria, ela já tinha Gemima Lemos MacMahon, fruto de uma relação anterior. Foi Pelé quem auxiliou na educação da moça, que posteriormente foi reconhecida como filha do rei pela justiça. Com Assíria, Pelé teve os gêmeos Joshua e Celeste. A rejeição de Pelé por Sandra tornou-se uma grande polêmica e o rei do futebol recusava-se a dar entrevistas sobre o assunto. Criou-se um dilema em torno deste fato, pois estamos falando de um homem que fez mil gols na carreira e tem no currículo três Copas do Mundo; e que rejeitou a filha publicamente sem nenhum pudor. A saída encontrada foi admirar o Pelé e repudiar o Edson.

                O eterno rei do futebol não costumava falar sobre a paternidade rejeitada, mas houve poucas vezes em que ele falou sobre o assunto. Em uma ocasião, ele disse que não se aproximou de Sandra por conta das pessoas que estavam em volta dela, inclusive o marido da mesma. Pelé conta que se sentia coagido a dar constantes compensações financeiras a filha. E quando perguntado sobre o modo diferenciado como tratou as filhas Flávia e Sandra, que pediram o reconhecimento paterno quando já eram adultas, Pelé disse que a primeira filha nunca teria pedido nada. Já Sandra, na visão de Pelé, queria o nome do mesmo em sua certidão de nascimento e quando conseguiu isso, passou a exigir parte da herança do ex-jogador. Ainda segundo Pelé, Sandra nunca quis uma aproximação, levou o caso para a mídia e a filha sempre teria falado com ele por intermédio de um advogado.

                A notoriedade da batalha para ser reconhecida como filha de Pelé e a facilidade de comunicação levaram Sandra para a vida política. Foi eleita vereadora no ano 2000 na cidade de Santos (SP) pelo PSC (Partido Social Cristão), sendo reeleita quatro anos depois. Sandra tentou ser eleita deputada estadual nas eleições de 2002 e 2006 e, embora tenha obtido uma quantidade de votos expressiva nas duas ocasiões, não foi votada o suficiente para conquistar uma cadeira na ALESP (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). Estamos falando de uma época onde os exames de DNA não eram feitos com a facilidade e acesso dos dias contemporâneos; e uma vez que o caso de Sandra teve repercussão nacional, a mesma era abordada com frequências nas ruas. As pessoas que passavam pela situação que ela passou pediam ajuda sobre o assunto. Diante deste fato, no ano de 2001 Sandra apresentou um projeto de lei que instituía o exame de DNA de forma gratuita. O projeto foi aprovado e virou lei municipal. Não demorou muito para que a lei em questão fosse estendida para todo o Brasil, tornando-se uma lei federal.

    Conclusão

                A recusa inicial e a rejeição de Pelé pela filha Sandra foram um estigma que perseguiu o rei do futebol por muitos anos. Quando o mesmo vivia seus últimos dias de vida, tal fato voltou à tona novamente, onde muitos elogiavam a lenda e reprovavam o ser humano. A notoriedade que Sandra obteve neste caso a levou a vida política, onde um drama pessoal a levou a criar uma lei municipal que posteriormente seria estendida para todo o país. O objetivo era evitar que as pessoas, famosas ou anônimas, passassem pela via crucis que ela passou. 

    Referências:

    https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2013/12/netos-de-pele-conseguem-na-justica-o-direito-de-receber-pensao-do-avo.html visualizado no dia 14/12/2023.

    https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/jogada/quem-e-sandra-filha-de-pele-nao-reconhecida-pelo-jogador-1.3308249 visualizado no dia 14/12/2023.

    https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1810200615.htm visualizado no dia 14/12/2023.

    https://www.hojeemdia.com.br/esportes/as-filhas-do-rei-pele-enquanto-sandra-batalhou-pelo-sobrenome-flavia-ganhou-o-carinho-1.941150 visualizado no dia 15/12/2023.

    Visualizado no dia 14/12/2023,

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. O drama pessoal que inspirou uma lei nacional. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/12/15/o-drama-pessoal-que-inspirou-uma-lei-nacional/ publicado no dia 15/12/2023.

  • Uma corrida presidencial feminina

    Da esquerda para a direita: Dilma Rousseff, Marina Silva e Luciana Genro. 2014 foi o ano em que três mulheres tiveram chances reais de chegar à Presidência da República. E chegou mesmo. Dilma Rousseff foi eleita em um pleito bastante acirrado. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                2014 foi o ano em que a disputa presidencial brasileira teve um número máximo de mulheres concorrendo ao pleito. Este número viria a ser superado nas eleições para a Presidência da República nos anos seguintes. São mulheres com trajetórias de vida próprias e que nesta eleição mostraram estar preparadas para o cargo que almejavam.

                As eleições para a Presidência da República de 2014 ocorreram em um contexto de agitação política e se revelaria em seu fim como a eleição mais acirrada da história do Brasil. Um ano antes, o país era sacudido pelas Jornadas de Junho, manifestações que inicialmente pediam a redução do preço do transporte público. Com o decorrer do tempo, outras pautas foram incorporadas e não tardou para tais manifestações mostrarem-se confusas em suas reivindicações, passando a ser compostas por diversos segmentos da sociedade. Ainda em 2013, o país foi a sede da Copa das Confederações, onde sagrou-se campeão; e também da Jornada Mundial da Juventude, com direito a uma visita do Papa Francisco ao Brasil. Em 2014, o Brasil sediou a Copa do Mundo, ocorrida em um contexto de manifestações, insatisfações com relação ao evento e também de denúncias de superfaturamento. Entretanto, quando se fala nesta Copa do Mundo, a lembrança que ficou no imaginário foi a derrota da seleção brasileira por 7 a 1 diante da Alemanha, que conquistou o tetracampeonato diante da Argentina de Lionel Messi.

    Apesar da (aparente) cordialidade, Dilma Rousseff e Aécio Neves trocaram pesadas acusações no pleito presidencial de 2014, especialmente no segundo turno. Imagem: Ricardo Moraes/Reuters.

                Dilma Rousseff estava buscando a reeleição e quatro anos antes tinha feito história ao se tornar a primeira mulher a ser eleita para a Presidência da República, o cargo mais alto da política brasileira. Dentre seus feitos, destaca-se o programa Mais Médicos, a criação do PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), a expansão do programa Minha Casa, Minha Vida e a exclusão do país do Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas). Além disso, foi também no governo Dilma que o país se tornou a sexta maior economia do mundo. Entretanto, tudo mudou no pós-Jornadas de Junho. Apesar do favoritismo no pleito presidencial, Dilma e muitos governantes viram sua popularidade ruir. Além disso, Dilma enfrentou acusações de que estaria envolvida no escândalo de corrupção que foi denunciado na Operação Lava Jato, que mostrou o envolvimento de funcionários da alta cúpula da Petrobras e também de integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), partido que Dilma integra. Apesar da arrancada na economia, entre 2011 e 2013 o PIB (Produto Interno Bruto) apresentou um crescimento abaixo do esperado e no anterior as eleições de 2014 a inflação estava acima do limite estipulado pelo governo. Apesar de tudo, em um pleito presidencial que foi para o segundo turno, Dilma Rousseff foi eleita para um segundo mandato, derrotando o político tucano Aécio Neves. Dilma recebeu 51, 64% e Aécio ficou com 48,36%. A diferença de votos foi de 3,4 milhões. Esta é considerada a eleição presidencial mais acirrada desde a redemocratização do país.

    Marina Silva em cerimônia de filiação ao PSB (Foto: Ueslei Marcelino / Reuters)

    Marina Silva e Eduardo Campos em cerimônia de filiação ao PSB (Partido Socialista Brasileiro). Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters.

                Em 2014, Marina Silva estava indo para sua segunda corrida presidencial. Em 2009, Marina desliga-se do Partido dos Trabalhadores (PT) e migra para o Partido Verde (PV), legenda pela qual disputaria o pleito presidencial de 2010. Conforme todo mundo sabe, Marina Silva não venceu este pleito presidencial, mas sim Dilma Rousseff. Entretanto, o desempenho de Marina foi expressivo porque, embora não tenha ido para o segundo turno, Marina terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, obtendo 19,33% dos votos. Após este período, Marina sai do Partido Verde e tenta fundar o REDE. Entretanto, a ambientalista não consegue fundar o partido em questão a tempo de disputar a corrida presidencial de 2014. Marina Silva filia-se ao PSB (Partido Socialista Brasileiro) e torna-se vice-presidente na campanha presidencial de Eduardo Campos. Tudo parecia estar sob controle até que em agosto deste mesmo ano, dois meses antes do primeiro turno das eleições, Eduardo Campos falece em um acidente de avião que choca o Brasil. Movidos por forte comoção, muitos brasileiros passaram a apoiar Marina Silva, fato comprovado nas pesquisas de intenção de voto. Por muitas semanas, a ambientalista apareceu como a preferida da população na corrida presidencial. Entretanto, com o passar do tempo, a popularidade de Marina foi caindo a olhos vistos e isso se deve a muitas razões. Marina Silva colocou-se como uma candidata da “terceira via”, aquela que colocaria fim na “velha política”. Porém, o plano de governo de Marina possuía muitas contradições e foi reformulado diversas vezes; e partidos como o PT de Dilma Rousseff e o PSDB de Aécio Neves, os partidos mais fortes deste pleito, a atacassem. Diante dos ataques, Marina Silva preferiu o silêncio, contrariando os eleitores, que esperavam uma atitude mais contundente. Este comportamento de Marina Silva fez com que ela fosse colocada como uma pessoa que não suportaria a pressão do Congresso Nacional diante de um impasse em um possível mandato. Em seu plano de governo, Marina Silva mostrou-se favorável às pautas de interesse da população LGBT+, mas voltou atrás após pressão de grupos conservadores, personificados na figura do pastor Silas Malafaia, conhecido por suas polêmicas e por não ser nem um pouco favorável a este segmento da sociedade. Poucas semanas antes do primeiro turno das eleições, as pesquisas de intenção de voto mostraram que Marina Silva não chegaria ao segundo turno. Tais pesquisas se confirmaram e Marina declarou apoio a Aécio Neves, que perdeu a disputa para Dilma Rousseff, que foi reeleita.

    Luciana Genro durante o primeiro turno das eleições de 2014. Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo.

                Filha de Tarso Genro, político integrante do PT e ex-governador do Rio Grande Sul, Luciana Genro integrou o Partido dos Trabalhadores por muitos anos, onde construiu parte de sua trajetória política. Luciana se uniu a integrantes descontentes com os rumos do petismo no governo e fundou o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) em 2005. Em 2014, o PSOL escolhe Luciana Genro como candidata a Presidência da República. Se Dilma Rousseff e Marina Silva procuraram ganhar o voto do eleitorado conservador, Luciana Genro fez o caminho oposto. Luciana não fugiu da questão e nem titubeou em demonstrar seu apoio a legalização das drogas, legalização do aborto e união entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, Luciana fez ataques contundentes contra Aécio Neves, com quem travou embates calorosos nos debates presidenciais. Dilma Rousseff também foi alvo dos ataques de Luciana Genro, assim como Marina Silva, vista como “indecisa” pela psolista. Luciana não chegou ao segundo turno, mas pode-se dizer que o saldo foi positivo para a política e também para o PSOL. Genro obteve 1,6 milhão de votos (1,55% do total), quase o dobro de votos obtidos por Plínio de Arruda Sampaio em 2010, que encerrou sua corrida presidencial com 886.816 votos. Os votos obtidos por Luciana Genro se concentraram no eixo Rio-São Paulo. Na capital paulista, a psolista obteve 3,33% dos votos (206.986 votos). No estado de São Paulo, Luciana Genro teve 2.41% dos votos. Na capital fluminense, no estado do Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, estado em que nasceu e constrói sua trajetória política, Luciana obteve respectivamente 4,07%, 2,72% e 2,25% dos votos. No segundo turno deste mesmo pleito presidencial, Luciana Genro adotou uma atitude peculiar. Ela não apoiou Aécio Neves, o que não foi nenhuma surpresa e também não apoiou Dilma Rousseff, uma vez que tem críticas ao partido. A única recomendação era não votar em Aécio Neves. Os seus eleitores estavam livres para votar em branco, votar nulo e até mesmo votar em Dilma Rousseff.

    Conclusão

                O pleito presidencial de 2014 foi por um tempo a disputa que teve o número máximo de candidatas mulheres e não somente isto: elas eram relevantes no cenário eleitoral e tinham chances reais de chegar ao posto máximo da política brasileira. Eram mulheres com trajetórias de vida e trajetórias políticas peculiares, adotando diferentes estratégias para vencer a corrida presidencial. Algumas destas estratégias não deram certo, mas diante do resultado deste mesmo pleito, pode-se dizer que pelo menos uma foi bem sucedida.

    Referências:

    https://www.uol.com.br/eleicoes/2014/noticias/2014/10/26/dilma-cresce-na-reta-final-e-reeleita-e-emplaca-quarto-mandato-do-pt.htm visualizado no dia 07/12/2023.

    https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/08/politica/1412795491_540736.html visualizado no dia 07/12/2023.

    https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/10/141003_marina_queda_ru visualizado no dia 07/12/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. Uma corrida presidencial feminina. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/12/08/uma-corrida-presidencial-feminina/ publicado no dia 08/12/2023.

  • A mulher que disputou o pleito presidencial de 1989

    Lívia Maria durante campanha presidencial de 1989. Imagem: Orlando Brito.

    Por Marllon Alves

                As eleições presidenciais de 1989 foram marcadas por muitas expectativas, uma vez que eram as primeiras eleições diretas para presidente após 21 anos de ditadura. Além disso, estas eleições foram as primeiras a ocorrer após a promulgação da Constituição de 1988. Foi neste contexto de múltiplas expectativas que Lívia Maria candidatou-se a Presidência da República, sendo a primeira mulher no Brasil a fazer tal coisa.

                O ano de 1989 começou no país debaixo de muitas expectativas. A Constituição brasileira atual havia sido promulgada no ano anterior. Conhecida também como Constituição Cidadã, é considerada a constituição brasileira mais abrangente com relação aos direitos dos brasileiros (tal Carta Magna classifica o racismo como crime, define o voto como algo universal e legitima a proteção aos povos nativos, por exemplo). Além disso, este era o ano em que estavam previstas novas eleições presidenciais e isso mobilizou o país. Entre os anos de 1964 -1985 o Brasil esteve mergulhado em uma ditadura civil-militar. Neste período, podia-se votar apenas para prefeito e vereador. Eleições para presidente e governador estavam suspensas. Nos anos 1980, quando a ditadura já se encaminhava para o fim, manifestantes foram para as ruas em várias cidades do país pedindo eleições diretas para presidente. Este movimento ficou conhecido como Diretas Já. Em 1985, a ditadura chega ao fim e Tancredo Neves é eleito presidente por meio de um colégio eleitoral. Porém, ele adoece e posteriormente morre, sendo substituído por seu vice José Sarney. Os clamores pedindo eleições diretas só seriam atendidos a partir de 1989.

                Foi neste contexto de novidades e expectativas que Lívia Maria candidatou-se a Presidência da República. Sendo a primeira mulher a fazer isso no Brasil, Lívia era filiada ao Partido Nacionalista (PN). Lívia Maria tinha apenas 30 segundos em sua propaganda política na televisão. Além do pouco tempo na TV, é perceptível que a campanha eleitoral de Lívia Maria contava com poucos recursos financeiros. Este fato ajuda a entender o motivo de sua propaganda televisiva contar com dados bancários a fim de que o eleitor pudesse ajudá-la financeiramente em sua campanha. A então candidata usava o pouco tempo que lhe era reservado na TV para direcionar sua campanha às “mulheres do Brasil”, uma vez que eram “a maioria” do eleitorado brasileiro. Além disso, ela pedia as mulheres para que “entenda a preferência feminina”.

                Lívia Maria perdeu o pleito presidencial de 1989, sendo derrotada ainda no primeiro turno. A candidata recebeu 179.925 votos, ficando atrás de políticos até hoje reconhecidos por sua atuação e/ou que fizeram história no passado, como por exemplo Fernando Collor (o vencedor destas eleições), Lula (atual Presidente da República), Leonel Brizola, Mario Covas, Ronaldo Caiado, Paulo Maluf e Ulysses Guimarães.

    Conclusão

                Embora tenha perdido o pleito presidencial de 1989, Lívia Maria é reconhecida como a primeira mulher a disputar as eleições para a Presidência da República no Brasil. O seu pioneirismo pavimentou o caminho para que outras mulheres fizessem o mesmo, alcançando o êxito em alguns casos.

    Referências:

    https://osdivergentes.com.br/orlando-brito/livia-abreu-a-primeira-candidata-a-presidente/ visualizado no dia 16/11/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. A mulher que disputou o pleito presidencial de 1989. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/11/17/a-mulher-que-disputou-o-pleito-presidencial-de-1989/ publicado no dia 17/11/2023.

  • O ingresso da mulher no mundo da educação formal no Brasil

    Meninas durante aula de costura na Escola Caetano de Campos, em São Paulo. Imagem: Escola Normal Caetano de Campos/CRE Mario Covas.

                Por mais de um século, a educação formal foi negada às mulheres que residiam no Brasil. Aquelas que pertenciam a famílias abastadas contratavam professores particulares para lhes ensinar. O século XIX verá a emergência de colégios femininos dentro e fora da cidade do Rio de Janeiro, a corte do Brasil Imperial. Estes colégios constituíam uma inovação porque as mulheres brancas e da boa sociedade tinham na lista mais um meio de sociabilidade. Por outro lado, tais instituições não rompiam com a lógica patriarcal, que enxergava a mulher como um ser que tinha por “função natural” o casamento e a maternidade.

                Aliada a Coroa Portuguesa, o catolicismo foi um dos instrumentos durante o processo de colonização do Brasil. E foi este mesmo catolicismo quem reforçou a mentalidade de que o corpo feminino deveria ser controlado. As severas leis do Estado e da Igreja, a vigilância incansável dos pais, dos tios, irmãos, tutores… tinham como objetivo o controle do sexo feminino. Diante deste fato, as situações em que a mulher deveria sair de casa eram extremamente raras. Circulava neste período a ideia de que o sexo feminino deveria sair de casa em apenas três ocasiões: “para se batizar, para se casar e para ser enterrada” (ARAÚJO, 2018: p. 49). O exagero de tal afirmação é evidente, mas o viajante Froger, que estava de passagem por Salvador (BA) em 1696 concluiu que as mulheres da região eram “de dar pena, pois jamais veem ninguém e saem apenas aos domingos, no raiar do dia, para ir à igreja” (BRUNET apud ARAÚJO, 2018: p. 49). Diante de tantas restrições, não havia muitas alternativas para as mulheres brancas e abastadas socializarem. As amigas, as vizinhas e em alguns casos até mesmo as cativas constituíam a rede de sociabilidade de tais mulheres. Quando o marido destas precisava fazer uma viagem, ele deixava a esposa em recolhimentos de mulheres. O objetivo era garantir que a mulher não manchasse a honra do marido quando este se encontrasse longe.

                Chegando no século XIX, o Brasil passará por profundas transformações que irão refletir também na vida das mulheres brancas e da boa sociedade. Com a chegada da família real portuguesa e sua corte, em 1808, o país verá a fundação da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e da Imprensa Régia, por exemplo. O Segundo Reinado (1840-1889) implementou no país uma agenda de modernização que causou profundas mudanças na sociedade. Este período viveu a chegada de imigrantes europeus, a construção de novos meios de comunicação e de ferrovias, a chegada do telefone e do telégrafo, o desenvolvimento das manufaturas, a expansão da rede escolar (assunto deste texto), a multiplicação de instituições culturais, o abastecimento de água, tratamento de esgoto, a introdução do gás, a chegada da eletricidade, o surgimento de transportes coletivos, a multiplicação de jornais e revistas e o fim do regime escravocrata. Tamanhas mudanças refletiram na vida das mulheres brancas e ricas, que, além da Igreja, passaram a frequentar os cafés, teatros, salões, bailes e os colégios femininos. Era preciso ensinar as mulheres a se comportar diante de tantas opções de entretenimento (a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, era apelidada de “Babilônia fluminense”) e os colégios femininos eram mais um instrumento nesta tarefa.

                O ingresso da mulher no mundo da educação formal no Brasil foi um longo processo. As mulheres não começaram a estudar nos colégios femininos de uma hora para outra. Antes do ingresso nestas instituições de ensino, pode-se falar em uma profissão que foi a precursora disso: a preceptoria. Era comum entre as famílias abastadas do Brasil Império a contratação de preceptores e “mestres das casas”. Os primeiros residiam na casa dos seus estudantes e, além de acompanhá-los nas lições diárias, estavam presentes com os estudantes em atividades cotidianas, como por exemplo a passeios e missas. Os segundos estavam na casa de seus estudantes semanalmente, em dias e horas estabelecidos, ministrando as primeiras letras ou conhecimentos específicos. Não havia uma duração exata de tais aulas e o próprio mestre ou a família que o contratava decidiam por quanto tempo duraria o serviço do mestre. A contratação de tais profissionais era basicamente por anúncios em jornais, onde famílias anunciavam o pedido ou o próprio mestre anunciava seus serviços. Além da aptidão para ensinar, vão ser exigidos corriqueiramente que estes mestres sejam “um senhor” ou “uma senhora”, com “afiançada conduta”, que tenham “mais de 40 anos” e que sejam de “idade avançada e bons costumes”.

                Na década de 1860 será notório a hegemonia de mulheres exercendo a preceptoria. Pelo fato de terem acesso a intimidade do lar, a exigência da “afiançada conduta” era reforçada. Além disso, havia também a preferência por preceptoras brancas e/ou nascidas na Europa. As mulheres que exerciam a preceptoria estavam situadas em uma classe social inferior à de quem as contratavam. Entretanto, elas eram possuidoras de capital cultural adquirido através de uma esmerada educação, que provavelmente foi adquirida em um passado mais abastado, onde elas próprias haviam tido aulas com preceptoras. Em alguns casos, estas preceptoras eram frutos de relacionamentos considerados proibidos para a época, onde os pais esforçaram-se para que ao menos tivessem uma boa educação, uma vez que não sendo reconhecidas como filhas legítimas, não teriam direito a herança ou dote.

                As preceptoras ensinavam indistintamente para crianças de ambos os sexos, além de “primeiras letras” e “instrução primária”; português, francês, latim, inglês, alemão, italiano, espanhol, literatura, religião, música, piano, matemática, desenho e pintura, por exemplo. As crianças do sexo feminino aprendiam a bordar, cozinhar, dançar, trabalhos com agulha e outros trabalhos manuais. Apesar de a profissão ser reconhecida, não era raro as preceptoras terminarem suas vidas em casas de repouso. Isso acontecia porque, ao fim da carreira, estas mulheres eram órfãs, solteiras ou empobrecidas e não tinham condições financeiras suficientes para viverem sozinhas. Quando seus serviços eram dispensados, estas mulheres deveriam sair da casa onde viveram e oferecer seu trabalho para outra família e caso caíssem doentes ou desenvolvesse algum problema psicológico, não havia outra opção, a não ser procurar um asilo ou casas beneficentes. Houve casos em que a preceptora atendeu a duas gerações de uma mesma família, mas tais situações foram exceções.

    Meninas formam fila em escola de São Paulo. Imagem: Escola Normal Caetano de Campos/CRE Mario Covas.

                Algumas famílias abastadas brasileiras continuarão solicitando os serviços de uma preceptora até os primeiros anos do período republicano brasileiro. Entretanto, colégios femininos surgirão na cidade do Rio de Janeiro e nas grandes cidades do período. Eram instituições que somente a boa sociedade tinha condições de arcar com as despesas e as disciplinas eram basicamente aquelas que as moças estavam acostumadas a aprender em suas respectivas casas, inclusive aquelas voltadas especificamente para as meninas. Era um período em que a boa sociedade começava a mostrar preocupação com a educação que suas meninas estavam recebendo e o argumento para que estas viessem a receber uma educação de qualidade era justamente o uso da lógica patriarcal: para que a mulher viesse a exercer com excelência a sua função de mãe e esposa, esta deve ser muito bem educada a afim de que seja capaz de educar seus filhos da melhor forma possível. Apesar de reproduzir o patriarcado, alguns colégios foram mal vistos em um primeiro momento e alguns chegaram a fechar as suas portas por falta de público.

                A proliferação das instituições de ensino voltadas para as mulheres fez com que o Parlamento do Brasil Imperial regulamentasse a educação no país. Foi decidido que seriam contratadas em tais instituições “senhoras” reconhecidas por sua “honestidade” e “conhecimentos” (incluindo o de saber cozinhar e bordar). Era determinado também que professores de ambos os sexos deveriam ter igualdade salarial. Entretanto, a diferença curricular representava também uma diferença de salário. Isso porque a inclusão do ensino de geometria na grade curricular dos meninos implicava uma maior remuneração, onde somente os professores usufruíam.

    Conclusão

                As moças da boa sociedade foram as primeiras a disfrutarem de uma educação formal. A preceptoria foi a precursora para que meninas pudessem estudar em uma instituição de ensino regulamentada por lei. Este fato era uma novidade que não rompia com as tradições de seu tempo: a fim de que pudessem exercer com excelência os ofícios do matrimônio e da maternidade, as mulheres deveriam primeiro ser muito bem educadas. Para isso, recorreram a preceptores e depois a colégios femininos, desde que pudessem pagar por tais serviços.

    Referências:

    ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. 10ª ed., 6ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2018, p. 45-77.

    COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 523p.

    LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. 10ª ed., 6ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2018, p. 443-481.

    VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Vozes femininas do Oitocentos: o papel das preceptoras nas casas brasileiras. In: FARIA, Lia; LÔBO, Yolanda (orgs.). Vozes femininas do Império e da República. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, p. 19-45.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. O ingresso da mulher no mundo da educação formal no Brasil. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/10/27/o-ingresso-da-mulher-no-mundo-da-educacao-formal-no-brasil/ publicado no dia 27/10/2023.

  • A (quase) princesa regente do Brasil

    D. Januária de Bragança. Imagem: reprodução.

    Por Marllon Alves

                Nascida em 1822, D. Januária de Bragança tornou-se conhecida como a Princesa da Independência. Mais velha que o irmão D. Pedro II, foi cogitada para ser Princesa Regente. Entretanto, esta possibilidade não encontrou apoio suficiente para ser concretizada.

                D. Januária de Bragança nasceu em 1822, mesmo ano em que o Brasil deixou de ser colônia de Portugal após três séculos de domínio lusitano. Apesar de ter nascida em um período de forte efervescência política e onde começou-se a forjar a identidade da nova nação, D. Januária de Bragança e seus irmãos foram educados de forma rígida e distantes de toda ebulição política. Quando tinha somente quatro anos de idade perdeu a mãe, a princesa Leopoldina, que desempenhou papel importante no processo de independência do Brasil. Quando estava com nove anos de idade, despediu-se do pai, a quem nunca mais veria pessoalmente. Isso porque D. Miguel, irmão do então imperador do Brasil, era casado com D. Maria da Glória, sua sobrinha e filha de D. Pedro I. O acordo seria de D. Miguel assumir a coroa portuguesa enquanto a sobrinha não tivesse idade para isso. Entretanto, o mesmo não cumpre o combinado e usurpa o trono da sobrinha. Com isso, D. Pedro I abdica do trono brasileiro e vai para Portugal lutar contra o próprio irmão e devolver o trono para a filha, de onde sai vitorioso. Separados por um oceano, D. Januária de Bragança e os irmãos passaram a se comunicar com o ex-imperador por carta. Assim foi até a morte do mesmo, em 1834.

                Com a abdicação e partida de D. Pedro I, o trono do Brasil ficou vago. Com isso, a instabilidade que se mostrou presente durante o Primeiro Reinado (1822-1831)eclodiu em diversas revoltas durante o Período Regencial (1831-1840). Eram revoltas longas e que exigiram grande empenho por parte dos militares para que fossem sufocadas. Revolta dos Malês (1835), Sabinada (1837-1838), Cabanagem (1835-1840), Balaiada (1838-1841)e Revolução Farroupilha (1835-1845)são as revoltas mais conhecidas e que colocaram em risco a unidade territorial do Brasil, que nesta época já apresentava dimensões continentais. Havia o temor de que o país se desmembrasse e desse lugar a outros países, tal como aconteceu com a América Hispânica durante seu processo de independência da Espanha. Havia também o temor de que repúblicas se instalassem no território que havia sido a América Portuguesa. Isso porque a república era associada a desordem, em oposição ao regime monárquico, associado a ordem e a estabilidade.

                Com a intenção de garantir a unidade territorial e apaziguar os ânimos exaltados nas diversas províncias do Brasil, cogitou-se aclamar um dos filhos do imperador como príncipe regente. O primeiro nome a ser cogitado foi o de D. Januária de Bragança, mais velha que Pedro II e que morava no Brasil. O Parlamento chegou a aclamá-la como Princesa Imperial, mas a oposição do regente padre Diogo Feijó a impediu de assumir. A princesa em questão tinha 14 anos de idade. Entretanto, como o país vivia um momento de instabilidade e turbulências políticas, a possibilidade de D. Januária ser aclamada princesa regente foi levantada mais uma vez. Os liberais queriam a Princesa da Independência no poder. Entretanto, a ideia não foi adiante por falta de apoio institucional.

                Teoricamente, a legislação da época permitia a ascensão de mulheres ao trono. Entretanto, na prática isso só acontecia quando de fato não havia um monarca do sexo masculino na família. Se existisse, era dele a preferência para ser coroado imperador, independente dele ser o filho mais velho ou não. Assim aconteceu com D. Pedro I, que tinha como irmãs mais velhas D. Maria Teresa de Bragança e D. Maria Isabel de Bragança. Situação semelhante aconteceria com D. Pedro II. Mesmo sendo três anos mais novo que D. Januária de Bragança, Pedro II foi quem assumiu o trono. Neste período, muitas mulheres haviam sido coroadas rainhas em diversas partes do mundo, inclusive em Portugal, cuja coroa brasileira herdou muitas tradições da coroa portuguesa. D. Maria I e a própria D. Maria da Glória são apenas alguns exemplos. Porém, dentro e fora do Brasil a presença de uma mulher no trono enfrentava muitas resistências.

                A situação se arrastou por mais um tempo, até que em 1840 D. Pedro II era coroado imperador. Porém, ele tinha apenas 14 anos de idade e a legislação dizia que um monarca para ascender ao trono brasileiro deveria ter a idade mínima de 18 anos. Como o jovem imperador tinha somente 14 anos, resolveram antecipar a maioridade do monarca, que até então era um adolescente. Esta manobra ficou conhecida como Golpe da Maioridade. Entraram em consenso para usar este golpe em prol de Pedro II, mas não chegaram a um acordo com relação a D. Januária de Bragança.

    Conclusão

                A forte resistência da sociedade da época com relação a presença de mulheres na política institucional e em cargos de liderança ajuda a entender o motivo de D. Januária de Bragança não ter sido proclamada princesa regente e posteriormente imperatriz do Brasil. Com D. Pedro II assentado no trono, D. Januária casou-se com Luís Carlos, Conde de Áquila, irmão de D. Teresa Cristina, esposa do segundo e último monarca do Brasil. Chegou a morar no país, mas ela e o esposo fixaram residência na França. D. Januária foi a última filha de D. Pedro I a morrer (sua morte ocorreu em 1901)e também a única filha do primeiro imperador do Brasil a chegar viva no século XX. A Princesa da Independência não foi aclamada princesa regente e nem imperatriz. Entretanto, nada disso foi empecilho para que ela fizesse história a sua maneira.

    Referências:

    ALVES, Marllon. Quem vai suceder D. Pedro II no trono? Dilemas em torno da sucessão ao extinto trono imperial brasileiro. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2022/07/01/quem-vai-suceder-d-pedro-ii-no-trono-dilemas-em-torno-da-sucessao-ao-extinto-trono-imperial-brasileiro/ publicado no dia 01/07/2022.

    https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/tentaram-colocar-no-poder-januaria-de-braganca-a-filha-nao-tao-conhecida-de-dom-pedro-i.phtml visualizado no dia 27/09/2023.

    https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/a-vida-da-princesa-dona-januaria-e-a-maxima-de-que-o-poder-e-efemero/ visualizado no dia 06/10/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. A (quase) princesa regente do Brasil. In: Gênero e História. Disponível em: a-quase-princesa-regente-do-brasil publicado no dia 06/10/2023.

  • O mito Roberta Close

    Roberta Close em pose para foto. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                A década de 1980 no Brasil viu a ditadura civil-militar de 1964 chegar ao fim. Com isso, assuntos outrora proibidos passaram a ser discutidos com frequência. Além disso, comportamentos outrora reprimidos voltaram com todo o vigor. É neste contexto que surge a figura de Roberta Close.

                Além de ser um golpe político, o golpe civil-militar de 1964 foi também um golpe moral. Desta forma, assuntos que atentavam contra a “moral e os bons costumes” eram censurados. Este fato ajuda a entender o motivo de algumas novelas da TV Globo que abordavam a homossexualidade e o divórcio (a saber: O Rebu (1974), por exemplo, e Despedida de Casado (1977)) terem sofrido censura; e ajuda a entender também o motivo de Leila Diniz ser perseguida pelo regime em vigor. A ditadura reprimiu também a população LGBT+, que não era bem recebida nem mesmo entre aqueles que faziam oposição ao golpe de 1964.

                A ditadura começou a dar os primeiros sinais de desgaste na década de 1970 e se intensificaria na década seguinte, resultando em seu fim. Com isso, manifestações contrárias ao regime e a discussão de temas censurados começaram a ocorrer, o que não significa que a repressão tenha findado. Neste contexto e impulsionados pelos movimentos LGBT+ dos EUA, começam a surgir movimentos LGBT+ no Brasil também. Além disso, mulheres trans como Rogéria e Cláudia Celeste começavam a ganhar destaque na televisão, o principal veículo de informação das massas populares até então.

    Roberta Close em pose para foto. Imagem: Reprodução.

                Roberta Close ganhou destaque no período descrito nos parágrafos anteriores e, conforme já dito neste texto, ela não foi a primeira mulher trans a ganhar visibilidade e espaço na mídia em uma época em que tal termo sequer existia. Entretanto, Roberta Close tinha o seu diferencial. Os estereótipos vigentes acreditavam que a mulher trans tinha traços e comportamentos que provariam que esta não era uma “mulher de verdade”. Seja a voz um tanto grave, as medidas da face, o tamanho do corpo… esperava-se das mulheres trans algo que denunciasse seu “sexo biológico”. Entretanto, este não era o caso de Roberta Close. O corpo e o comportamento de Roberta eram aquilo que se esperavam de uma “mulher cis”. Além disso, a modelo era muito bonita, fazendo com que fosse presença constante nos principais programas de televisão da época.

    Roberta Close em ensaio para a Playboy, em 1990. O ensaio foi um sucesso. Imagem: Reprodução.

    Conclusão

                Roberta Close fez sucesso em um momento onde o movimento LGBT+, em especial o de mulheres trans, ganhava bastante visibilidade. Era um contexto em que grupos até então silenciados gritavam por respeito e visibilidade. Conscientemente ou não, Roberta Close deu sua contribuição ao movimento e na atualidade tem o seu pioneirismo reconhecido.

    Referências:

    https://insideplayboybr.wixsite.com/ipbr/post/roberta-close-junho-1984 visualizado no dia 13/09/2023.

    https://insideplayboybr.wixsite.com/ipbr/post/roberta-close-mar%C3%A7o-1990 visualizado no dia 13/09/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. O mito Roberta Close. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/09/15/o-mito-roberta-close/ publicado no dia 15/09/2023.

  • Uma dama despretensiosa

    Regina Rosemburgo em pose para foto. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                Regina Rosemburgo foi a socialite mais badalada dos anos 1960 na cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se amiga de pessoas cujos familiares eram muito influentes por conta da atuação política ou grande fortuna. Entretanto, Regina nunca se deixou fascinar por este universo, mostrando-se sempre uma pessoa desapegada de sua fortuna e bens materiais.

                Regina Rosemburgo, também conhecida como Regina Léclery, foi uma atriz carioca oriunda do Leme, bairro nobre da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Nascida em 1939, foi recepcionista de banco, miss Lagoinha Country Club (sobre este período, mais tarde Regina se referiu ao mesmo como “aquelas frescuras todas”) até despontar para o cinema com os filmes Garota de Ipanema (1967) e Quem é Beta? (1967). Regina cultivou muitas amizades com artistas nacionais e estrangeiros consagrados em sua época cujo tempo imortalizaria suas respectivas obras. Regina foi amiga de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Salvador Dalí, Roger Vadim, Jane Fonda, Marisa Berenson e Gunther Sachs, por exemplo. Com relação a Glauber Rocha, Regina afirmou em entrevista que Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) foi escrito em sua casa, onde muitas cenas que aparecem no clássico filme brasileiro foram pensadas por Regina e Glauber. Regina Rosemburgo integrava o elenco da obra em questão, mas casou-se com seu primeiro marido e o seu papel no longo ficou com Yoná Magalhães.

                Casou-se pela primeira vez com o milionário Wallinho Simonsen, filho de Mário Simonsen, o homem mais influente do Brasil na época. Mário era dono da Panair no Brasil e da TV Excelsior. O casamento com Wallinho abriu portas para Regina frequentar a alta sociedade brasileira e estrangeira. A residência da monarquia inglesa, a casa de férias do casal Jacqueline e John Kennedy (foi com Wallinho e Regina que John Kennedy passou seu último final de semana. Poucos dias depois, enquanto desfilava junto com a esposa em um carro aberto, o então presidente dos EUA foi assassinado. Era 1963 e até hoje o crime nunca foi esclarecido).

    Regina Rosemburgo ao lado de Vinícius de Moraes em 1973. Imagem: Revista Fatos & Fotos.

                Apesar do glamour e (aparente) felicidade, o casamento de Regina com Wallinho chegou ao fim em 1966. Neste período, Regina já conhecia Gérard Léclery, dono da maior fábrica de calçados da Franca, com quem se casaria em 1968. Regina tinha casas na França, na Suíça, na Barra da Tijuca, um apartamento em Paris e foi uma das primeiras pessoas a comprar uma casa do mestre Zanine, que ficava na Joatinga. Após contrair matrimônio com Léclery, Regina passa a viver a maior parte de sua vida em Paris. Lá a atriz vivia em uma luxuosa mansão situada na sofisticada Avenue Foch. Quadros de Gaugin, Renoir e Picasso decoravam a mansão. Além disso, Regina e o marido contavam com um motorista uniformizado, um cozinheiro, um garçom, um maître e um valet de chambre.

                Os filmes em que participou, os casamentos badalados e o ingresso no mundo da alta sociedade fizeram de Regina Rosemburgo muito popular, aparecendo frequentemente em capas de revistas e jornais. O jornalista Ibrahim Sued a incluiu em sua lista de dez mulheres mais elegantes do Brasil. Entretanto, Regina não dava importância a nada destas coisas. Isso porque a atriz nunca foi de fato preocupada com a moda. As amigas Carmen Mayring Veiga e Teresa de Sousa Campos eram quem a levavam, praticamente a força, para fazer compras nas lojas de Ipanema. Apesar de viver uma vida de luxo, Regina era também pouco apegada a bens materiais. Uma característica marcante de Regina era o fato de que, se alguém mostrasse interesse em possuir algum objeto que a pertencesse, a atriz enviava o mesmo como presente para a pessoa.

    Capa da revista O Cruzeiro sobre a morte de Regina Rosemburgo (ou Léclery). Imagem: Reprodução.

                Regina Rosemburgo faleceu vítima de um acidente aéreo em Paris em julho de 1973. O avião em que a mesma estava pegou fogo por conta de um possível cigarro aceso dentro da aeronave. Caiu em um campo de plantação de cebolas numa tentativa dos pilotos de salvarem todos, mas foi em vão. Foram 122, com destaque, além de Regina Rosemburgo, para Filinto Müller (político e militar que ganhou fama internacional por prender o casal Olga Benário e Luís Carlos Prestes, deportando a mesma para a Alemanha nazista quando esta se encontrava em avançada gestação. Recai sobre si a fama de torturador e de realizar prisões arbitrárias. Na época do acidente, ele era presidente do Senado e do Congresso Nacional), o cantor Agostinho dos Santos, o iatista tricampeão mundial Jörg Bruder e os jornalistas Júlio Delamare e Antônio Carlos Scavone. Apenas 10 tripulantes e um passageiro sobreviveram. Foi uma tragédia que chocou o Brasil, tendo muita repercussão na época.

                Regina tinha vindo ao Brasil somente para tratar de assuntos referentes a sua casa. A atriz pretendia fixar definitivamente sua residência na Europa. A mesma deixou três filhas, a saber: Roberta (tinha nove anos de idade na ocasião da fatalidade e foi fruto do casamento com Wallinho Simonsen), Giorgiana (tinha três anos quando a mãe faleceu e foi fruto da união de Regima com Lecléry) e Márcia, filha adotiva e que também tinha nove anos de idade quando a mãe faleceu.

    Conclusão

                Regina Rosemburgo foi uma pessoa que fez parte da alta sociedade nacional e também internacional. Foi uma mulher bonita, talentosa, famosa, rica e que se casou com os homens mais cobiçados do período. Ela esteve em lugares que até hoje muitas pessoas sonham em estar e foi o que muita gente sonha em ser até hoje também. Entretanto, Regina sempre foi desapegada a tudo isso, classificando-os sem importância. A brevidade de sua vida mostra que Regina não estava equivocada.

    Referências:

    https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/regina-rosemburgo-a-socialite-brasileira-mais-badalada-dos-anos-60-teve-fim-tragico visualizado no dia 10/08/2023.

    http://www.famososquepartiram.com/2018/08/regina-leclery.html#:~:text=Regina%20Rosemburgo%20nasceu%20no%20Leme,a%20freq%C3%BCentar%20o%20Jet%2DSet. visualizado no dia 10/08/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. Uma dama despretensiosa. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/08/11/uma-dama-despretensiosa/ publicado no dia 11/08/2023.

  • A (quase) Miss Brasil que ganhou uma marchinha de carnaval em sua homenagem

    Vera Lúcia posa com sua faixa de miss. Imagem: Reprodução.

    Por Marllon Alves

                Vera Lúcia esteve perto de ganhar o título de Miss Brasil. Se isso acontecesse, seria a primeira mulher negra a conquistar tal título, se juntando ao grupo de personalidades negras que ganhavam destaque nos anos 1960, mesma década em que Vera Lúcia tentou ser Miss Brasil. Entretanto, a moça não conquistou o sonhado título e ganhou uma marchinha de carnaval em sua homenagem.

                Vera Lúcia frequentava o Renascença Clube (que existe até hoje no bairro do Andaraí, zona norte da cidade do Rio de Janeiro) desde criança. Foi a então diretora deste mesmo clube que a convidou para disputar o Miss Estado da Guanabara, conhecido por levar candidatas fortes para o Miss Brasil. Com 1,68m de altura e 18 anos, Vera Lúcia atendia aos padrões do concurso. Mesmo assim, a moça não aceitou o convite de imediato, fazendo isso somente na terceira vez em que ele foi feito. Vera Lúcia ganhou o Miss Estado da Guanabara em 1964, sendo a primeira mulher negra a conseguir tal façanha. Décadas depois, Vera Lúcia confessou em entrevista que tinha receio de ingressar no concurso porque tinha consciência de que era negra e sabia do que as candidatas negras anteriores a ela passaram durante este mesmo concurso.

                A então Miss Estado da Guanabara tornou-se muito popular no Rio de Janeiro e também em São Paulo e a disputa pelo título de Miss Brasil acabou sendo um “caminho natural”. Entretanto, o temor de Vera Lúcia se concretizaria: a moça seria alvo de ofensas raciais. A então candidata tinha consciência de que estava representando a população negra e isso lhe deu forças para enfrentar as violências que viriam pela frente. Vera Lúcia conta que no dia do concurso de Miss Brasil, também em 1964, recebeu uma ligação no estúdio de seu costureiro dizendo para ela desistir porque do contrário seria agredida. Porém, Vera ressalta que ao mesmo tempo recebeu apoio de muita gente. No dia do concurso as ofensas raciais se fizeram presentes. Na hora em que Vera passou desfilando em grupo, havia uma senhora que corria entre as mesas e entre palavras de cunho racista disse que o lugar de Vera era na cozinha.

    Da esquerda para a direita: Vania Padilha, Vera Lúcia e Elci Wurzler na ocasião do concurso Miss Estado da Guanabara de 1964, onde Vera foi a campeã. Imagem: O Cruzeiro.

                As ofensas raciais sofridas por Vera Lúcia comprometeram o seu desempenho no concurso de Miss Brasil. A então candidata conta que ficou tão nervosa que na hora de desfilar decidiu não olhar para um determinado lado do Maracanazinho, local em que ocorreu o concurso em questão, onde estava a torcida do Renascença Clube. A jovem foi da entrada para o júri muito rápido, não sendo devidamente avaliada. Vera era a única das candidatas que sabia dar um pivô completo (uma volta de 360º em volta do próprio corpo durante o desfile), algo que fez por duas vezes e retornou para seu caminho. Apesar disso, tal prática não foi o suficiente e a coroa de Miss Brasil ficou com a paranaense Ângela Vasconcelos. Ângela foi a primeira candidata representante do Paraná a conquistar tal coroa.

                É interessante notar que a década de 1960 foi um período em que várias personalidades negras estavam se destacando nas mais diferentes áreas no Brasil. Este era um contexto em que Carolina Maria de Jesus era reconhecida dentro e fora do Brasil com seu livro Quarto de Despejo, Ruth de Souza já era uma consagrada atriz brasileira, Wilson Simonal era ouvido a exaustão e visto da mesma forma nos programas de televisão, a fama de Pelé corria o mundo e o atleta já tinha duas copas no currículo (a terceira seria conquistada em 1970), Abdias do Nascimento já era reconhecido por sua luta antirracista e o Brasil tinha Raimundo Sousa Dantas, o primeiro embaixador negro brasileiro.

                Embora não tenha conquistado o título de Miss Brasil, Vera Lúcia encantou muitos brasileiros com sua elegância. Muito popular no Rio de Janeiro e também em São Paulo, Vera estampou muitas capas de revista. Encantado com Vera Lúcia nos tempos em que esta ainda era Miss Estado da Guanabara, o compositor João Roberto Kelly compôs Mulata iê-iê-iê, também conhecida como Mulata Bossa Nova, tendo Vera como inspiração. Embora o nome de Vera não seja citado, quem conhece o contexto saberá de quem se fala. Mulata Bossa Nova é em referência a um estilo musical brasileiro que estava fazendo sucesso dentro e fora do país. Hully Gully é um estilo de dança, mas no contexto desta marchinha pode ser interpretado como pista de dança ou passarela. Vera Lúcia encantava quando desfilava e João Roberto confirma este fato, dizendo na marchinha em questão que “só dá ela”. João Roberto compara Vera a uma boneca, tamanho era a beleza e a elegância da então Miss Estado da Guanabara e o compositor acrescenta também: “cheia de fiu-fiu”, expressão muito usada para fazer referência a uma mulher bonita. Esta mesma expressão era a simulação de um assovio, feito quando uma mulher era vista andando em local público. Nos últimos tempos, tal prática tem sido vista como um assédio.

                João Roberto Kelly notou que Vera Lúcia era uma exceção nos concursos de beleza e escreveu o seguinte verso: “Esnobando as loiras e as morenas do Brasil”. Morena era um termo para se referir às pessoas brancas de cabelos castanhos ou pretos. Mulato era uma expressão usada para se referir às pessoas negras de pele clara. Por vezes, estas eram frutos de relações inter-raciais. Mulato vem de mula, que é um animal fruto do cruzamento entre um burro e uma égua ou ente uma burra e um cavalo. Movimentos negros defendem a abolição do termo em questão, alegando que ele é de cunho racista. Vera Lúcia, a “musa inspiradora” de Mulata iê-iê-iê, já disse em entrevista que tal termo nunca a ofendeu.

    Conclusão

                Vera Lúcia teve muito destaque em sua época e este destaque permaneceu, mesmo quando ela não conquistou o título de Miss Brasil. Esta popularidade virou marchinha de carnaval, tornando-se muito popular. Embora não tenha sido a intenção, alguns termos presentes na composição de João Roberto Kelly em homenagem a Vera Lúcia são considerados ofensivos nos dias atuais. Este fato indica que a sociedade está em constante mudança.

    Referências:

    https://www.geledes.org.br/em-27-de-junho-de-1964-ha-50-anos-primeira-mulher-negra-era-coroada-miss-brasil/ visualizado no dia 20/07/2023.

    https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2014/noticia/2014/01/mulata-bossa-nova-conta-historia-por-tras-da-marchinha-de-sucesso.html visualizado no dia 20/07/2023.

    Como citar este texto:

    ALVES, Marllon. A (quase) Miss Brasil que ganhou uma marchinha de carnaval em sua homenagem. In: Gênero e História. Disponível em: https://generoehistoria.com/2023/08/04/a-quase-miss-brasil-que-ganhou-uma-marchinha-de-carnaval-em-sua-homenagem/ publicado no dia 04/08/2023.